Pular para o conteúdo principal

UMBANDA, ANCESTRALIDADE E AMOR: FALANDO UM POUCO DA HOMOSSEXUALIDADE NAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA – POR EDUARDO DE OXOSSI

 


Por: Eduardo de Oxossi – T.U.S. Caboclo Pena Verde e Flecheiro de Aruanda

 

Como sacerdote de Umbanda, minha missão é estudar, manter, propagar e apoiar tudo que o ambiente sagrado necessitar, mas acima de tudo, manter a Caridade, o Amor e a busca pela coerência com a energia Divina dos nossos sagrados Orixás e aquilo que eu acredito sobre eles.

 

Por isso, considero essencial olharmos nos dias de hoje para um tema que, embora gere tabu em muitas esferas humanas conservadoras, deve ser abordado com a leveza da alma e a profundidade da nossa ancestralidade: a homossexualidade no contexto das religiões de matriz africana.

 

Nossa Umbanda é um reflexo do Brasil e suas misturas, uma fé que acolhe e transforma, une ao invés de separar. No entanto, para entender algumas resistências que ainda persistem, precisamos ir à fonte: a cultura Yorùbá tradicional, que é a base da nossa matriz. É lá, na África milenar, que encontramos a forte ênfase na ideia de que a união entre homem e mulher tem um propósito primordial: a procriação e a garantia de descendentes (prole). Esse conceito que torna aversivo a união entre 2 pessoas do mesmo sexo é também presente em outras culturas e religiosidades como a cristã.

 

Naquela época e sociedade, a descendência não era apenas um desejo, mas uma necessidade vital. Era o que assegurava a continuidade do clã, do reinado, do legado, dos exércitos, da cultura, o fortalecimento da comunidade e a garantia de que após a morte, haveria quem cultuasse o ancestral mantendo seu Axé (Ašę) vivo. Por isso, qualquer relação que fugisse a este molde reprodutivo era vista com desconfiança ou inadequada, chegando a ser considerada um tabu social e cultural, pois não gerava filhos "pelas vias convencionais”.

 

É aqui que entra uma reflexão profunda, que desfaz muitos preconceitos: o conceito de "Deus Reflexo". As leis religiosas e morais, de modo geral, foram criadas por homens, os sacerdotes e, por mais que buscassem a vontade divina, elas eram inevitavelmente moldadas pelas experiências, vivências, valores e propósitos humanos daquela comunidade, época e contexo. O sacerdote (Bàbáláwo), na tradição de Ifá, por exemplo, tem a responsabilidade e, em certas ocasiões, a liberdade de criar novas estórias (Itàn) e interpretar os desígnios (Odù) de acordo com as necessidades sociais do seu povo.

 

Portanto, quando encontramos regras muito severas ou restritivas, precisamos questionar: isso é uma ordem direta de Olódùmarè (Deus Supremo) e dos Orixás, ou é uma lei criada pelos homens para manter a estrutura social, cultural e o controle de uma comunidade que dependia da procriação para sobreviver e se perpetuar?

 

A própria tradição de Ifá nos traz a chave para essa resposta. Há um debate sobre se a homossexualidade é parte do Orí (destino) escolhido no Òrun (céu) ou se é adquirida aqui no Aiyé (terra) através do livre-arbítrio. No entanto, o mais importante é o que um sacerdote de Ifá afirmou: “Ifá não descrimina, o homem sim”.

 

Se a força divina que rege o destino não discrimina, e se o livre-arbítrio permite as escolhas do amor, fica evidente que o tabu é cultural e social, e não um decreto espiritual imutável. Na Umbanda, carregamos o Axé (Ašę) da matriz africana, mas o adaptamos ao nosso tempo e à nossa vocação de acolhimento. Não estamos mais presos aos mesmos imperativos de sobrevivência de uma tribo no continente africano.

 

Para nós, o que importa para a espiritualidade é a caminhada do indivíduo (seu Orí), o seu compromisso com o bom caminho e a dedicação ao amor, seja ele qual for. A orientação sexual não é vista como um "mal a ser curado" ou um "erro no destino". O Axé de um terreiro e o legado de um sacerdote (ou sacerdotisa) não dependem unicamente da reprodução biológica.

 

A necessidade de ter descendentes para cultuar o ancestral e dar continuidade ao Axé pode ser cumprida através da adoção de filhos inclusive que foram abandonados por casais heterossexuais. Nas próprias lendas dos Orixás vemos a adoção presente, como por exemplo, quando yemanjá adota Obaluaê abandonado por Nanã. O vínculo de amor e família que se estabelece é tão forte e válido quanto o biológico, garantindo a prosperidade e as boas energias para a união. Se Yemanjá não tivesse adotado, criado e nutrido Obaluaê, será que teríamos sua força hoje?

 

Sangue de prole não é mais sinônimo de continuidade nos dias de hoje. A sociedade mudou. Tem filhos de sangue matando pais, e pais de sangue abortando filhos. Tem filhos colocando pais em casas de repouso para não ter que cuidar deles na velhice. A história de grandes nomes da nossa ancestralidade, como Pierre Fatumbi Verger, que foi iniciado como Bàbáláwo com altíssimo respeito e é cultuado como ancestral mesmo sendo homossexual e não tendo gerado descendentes biológicos é mais uma prova que a dedicação, o Axé e o propósito de vida são o que realmente marcam a alma, e não a forma como se ama.

  

Nossa Umbanda celebra o amor em todas as suas formas, porque o amor é a manifestação mais pura da Criação Divina! Sem o trono do amor, nada se mantém. O amor é a força conceptiva que mantem as famílias, casais, comunidades e seres humanos em aliança. Não é o sangue que une, mas o amor!

 

Para resumir nossa reflexão, guardemos em nosso coração estes apontamentos para reflexão e evolução: 

 

A Base Cultural da Restrição: O tabu contra a homossexualidade nas matrizes africanas tradicionais Yorùbá está ligado, primariamente, à necessidade social e cultural de gerar prole (descendentes) para garantir a sobrevivência do clã e a manutenção do culto ancestral, e não a uma proibição divina universal.

 

O "Deus Reflexo": Muitas regras e Itàn (estórias sagradas) foram criadas pelos próprios sacerdotes para refletir e preservar os interesses e a moral da sua sociedade na época, o que pode ser chamado de "Deus Reflexo". Quando um Itàn refere a Xango como um homem justo que teve várias esposas, ele espelha o machismo da época. Ninguém de cultura monogâmica que exerce religiosidade de matriz africana tem 3 esposas e é visto como alguém justo nos dias de hoje. Há de se tomar um cuidado com as regras criadas, passadas, transmitidas e como elas foram alteradas ao longo dos anos para fortalecer muitas vezes interesses humanos.

 

A Mensagem do Oráculo: A própria tradição aponta que "Ifá não descrimina, o homem sim", sugerindo que o preconceito reside na interpretação humana, e não na vontade do Criador (Olódùmarè). Os homossexuais são muito presentes nas religiões de matrizes africanas até mesmo pelo fato deste ambiente ser muito mais acolhedor do que religiões de matrizes cristãs.

 

Adoção e Continuidade: O propósito de ter descendentes para dar continuidade ao Axé da família ou do templo pode ser plenamente cumprido através da adoção, provendo um destino digno para uma criança e perpetuando o vínculo espiritual na união, independente da orientação sexual. Nas próprias lendas de orixás vemos a adoção de um orixá pelo outro como continuidade da “espécie”, no caso, da cultura.

 

Umbanda: Amor e Acolhimento! Nossa Umbanda Sagrada, como religião brasileira e sincretizada, somada, misturada a outaras culturas, transcende as necessidades sociais de reprodução da África ancestral. O foco é o Amor, o acolhimento da singularidade, o Livre-Arbítrio e o bom caminho (Orí) do indivíduo, honrando a Divindade através da Caridade e do Acolhimento a todos os filhos e filhas. Não se trata de uma religião julgadora ou que exclui pessoas por serem diferentes de um padrão moral.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRABALHOS COM CABEÇA DE CERA NA UMBANDA

INTRODUÇÃO A Cabeça é o lugar mais sagrado para o Umbandista. É ali que vive o seu Ori, sua coroa, sua mente, seu cérebro, o início dos seus chacras, etc. Trabalhos com cabeça de cera devem ser feitos por pessoas experientes e fundamentadas. Na dúvida sobre o que ou como fazer, sempre consulte o pai de santo de sua confiança.  CABEÇA DE CERA PARA OXUM: PEDIDOS E PROMESSAS Oxum é muito conhecida por receber cabeças de cera em seus trabalhos, seja ele para amor (embora a Umbanda em si seja contra trabalhos de amarrações) ou para outros pedidos.  Em São Paulo está localizado o Santuário de Aparecida do Norte. Lá é recebido diariamente muitas peças de cera em pedido ou agradecimento de graças alcançadas por seus fiéis.  Podemos fazer cabeça de cera para cura, para melhorar os pensamentos, clarear as ideias, etc.  CABEÇA DE CERA COM YEMANJÁ: CALMA, LIMPEZA E DISCERNIMENTO.  Yemanjá é a mãe de todos. Este trabalho é indicado para acalmar...

A HISTÓRIA DO EXU SETE COVAS

Autor: Eduardo de Oxossi (Dirigente espiritual do T.U.S. Caboclo Pena Verde e Flecheiro de Aruanda). Sempre que lermos um texto "a história do guia tal" devemos ter em mente que aquela história é daquele guia e não da falange toda, ou seja, neste texto, por exemplo, vamos contar a história de um Exu Sete Covas e não a história de toda falange Sete Covas. Na dúvida sobre este assunto, procure o pai de santo de sua confiança e conheça a doutrina da casa que você frequenta.  Se você trabalha com Exu Sete Covas, ele mesmo pode lhe contar a história dele ou à um cambone se for permitido. Boa leitura!  EXU SETE COVAS Exu Sete Covas em vida foi um escravo muito bonito que era protegido pelas mulheres brancas de sete fazendas da região. As mulheres (donas e sinhás usavam o escravo entre elas como objeto de desejo sexual na ausência de seus maridos). Mascaravam, esta situação alegando que o escravo era um ótimo funcionário para serviços pesados domésticos....

NOMES DE ERES NA UMBANDA

INTRODUÇÃO A linha de erês de Umbanda é diferente do Candomblé. O Candomblé segue nações (Ketu, Gêge, Nago) e como tal, sua doutrina antecede a Umbanda (religião criada posteriormente). No Candomblé a linha de crianças é tratada com forte influência e fundamento dos Orixás "Ibejis" e o nome do guia de trabalho geralmente acompanha o Orixá de cabeça do médium, ou seja, para um filho de Oxossi, o erê pode ser chamado de flechinha, para um êre de filha de Oxum, pode ser por exemplo, a erê cachoerinha e assim por diante.  A Umbanda é uma religião 100% brasileira que se utiliza de conceitos de outras religiões como as religiões indígenas, o espiritismo, o catolicismo, etc. Como tal a sua linha de erês é regida fortemente pela figura de Cosme, Damião e Doum.  Podemos ter nomes oriundos do catolicismo (João, Maria, Gustavo, Pedro, Matheus, etc), nomes das religiões indígenas (flechinha, caboclinho do mato, caboclo mirim, etc), de Matriz Africana / Ligada diretamente ao Orixá regente...